Ciências

Filosofia da Ficção Cientifica

O que chamamos FICÇÃO CIENTÍFICA, é um “gênero” literário que possui caracterísitcas ímpares, como ser historicamente datável e permitir qualquer tipo de situação. Tais caracteristías decorrem principalmente do fato de ela não ser um “gênero”, mas uma fusão entre:

– O Grau de Extrapolação da Realidade; e

– O Grau de Racionalidade que justifica essa extrapolação.

O termo “Científico” não é preciso, fazendo melhor sentido talvez na concepção de “Ciência” do início do Século XX, quando o termo surgiu, onde a palavra Ciência possuía conotações distintas das que apresenta ao final deste mesmo século.

Para entender melhor o que significa a FC, é necessário fazer algumas distinções simples.

Um relato, conto ou estória, pode ser inicialmente FICÇÃO e NÃO-FICÇÃO.

Na Não-Ficção estariam os relatos baseados em eventos considerados reais, ainda que muitos sejam questionávies, inclusive eventos históricos incertos. Como tudo está sujeito a interpretação, nunca se pode garantir uma completa fidelidade, mas para simplificar, consideremos a existência de um âmbito na literatura que descreve a “Realidade”.

A Ficção por sua vez trata de algo que não tenha uma plena representação na realidade, e por sua vez pode ser REALISTA ou não, entendendo “Realista” no sentido de Plausível.

As Ficções Realistas então, são aquelas que poderiam ocorrer no contexto da realidade sem violar a normalidade do mundo, podendo inclusive, muitas vezes, serem confundidas com eventos reais, o que obriga muitas produções a incluírem a advertência de não se confundir tal obra de Ficção, com fatos, eventos, lugares ou pessoas reais, cuja qualquer semelhança será mera coincidência.

As Ficções Não-Realistas abrangem todas as criações que a princípio não teriam lugar na realidade. Entre elas os primeiros temas de expressão cultural humana, os temas Mitológicos, com seus contos e feitos fantásticos, transformados em produção artística literária desde os primórdios da escrita humana.

Portanto a Ficção Fantástica é de certa forma, tão antiga quanto a cultura humana.

Porém a FF teria que se separar da Mitologia, coisa que embora tenha ocorrido há milênios, não parece haver precisão quanto a época onde tenham surgido as primeiras obras de criação livre sobre temas fantásticos que não tenham ligação direta com a mitologia.

Muitas dessas obras teriam se perdido no tempo, outras se impregnaram à cultura e ajudaram a formar novas mitologias, o que viria, até hoje, a confundir o fantástico com o real. Mas como “gênero” literário em si, creio que só mesmo a partir da Idade Moderna poderemos colher alguns exemplos mais claros.

Com o Renascimento, o advento da Imprensa, o Iluminismo, e a ascensão da Ciência, o modo da sociedade interpretar a realidade mudou. A partir daí passaria a haver um maior questionamento sobre o mundo que nos cerca. Antes em geral a Religião satisfazia a grande maioria das pessoas sobre o que o mundo é, ou deveria ser.

Mas com o progresso Científico a mente humana foi libertada para investigar, questionar, e se possível invalidar aquilo que não pudesse ser comprovado, ou que não apresentasse um mínimo de coerência.

Nesse âmbito, a FF prosseguiu cada vez mais independente das crenças populares, podendo então produzir estórias com conteúdos plenamente novos. Mas por outro lado um impulso cada vez maior para o racional começou a transformar o gênero. As pessoas, incapazes de abandonar a Fantasia mas empurradas pela Racionalidade, e também contagiadas pelo progresso científico que prometia grandes feitos no futuro, passaram a incorporar uma cada vez maior acuidade racional.

Até que por fim surgiria Ficção Científica, que é uma tentativa de produzir um conteúdo a princípio Fantástico mas que poderia ser real sem grande impacto para a normalidade do mundo.

A grande diferença então é:

A FICÇÃO FANTÁSTICA é incondicionalmente fora da realidade.

A FICÇÃO CIENTÍFICA é relativamente fora da realidade. Isto é, está fora apenas no contexto em que vivemos, poderá ser real numa época futura, pode ter sido real numa época passada, ou em um outro mundo ou local em especial.

Um nome mais preciso seria:
FICÇÃO SUPRA-REALISTA RACIONAL.
Mas dado ao estabelecimento do termo comum, eu não me atreveria a utilizá-lo usualmente, e lembremos que nossa cultura confunde o racional com o científico, de modo que o que mais se considera racional seja o que é apoiado pelos paradigmas científicos.

É claro que há confusão entre esses dois campos, FF e FC, como entre vários outros, mas podemos tentar compreender essas relações e diferenciações.


NÃO-FICÇÃO
———————-
FICÇÃO —> REALISTA
|
–> SUPRA REALISTA
|–> “CIENTÍFICA” (Racional)
|–> FANTÁSTICA (Não Racional)

Os diversos gêneros propriamente ditos: Ação, Aventura, Comédia, Drama, Épico, Erótico, Guerra, Policial, Suspense, Terror e etc. Podem ser tanto Ficção quanto Não-Ficção, creio que isso seja óbvio. A vida real pode nos proporcionar qualquer uma dessas experiências.

Mas quando Ficção, esse gêneros também podem ser Realistas ou Supra Realistas, dependendo do conteúdo que tragam. E quando Supra Realistas podem ser Fantásticos ou Científicos, ou melhor dizendo, podem não ter preocupação em se validar racionalmente, ou sim.

Portanto, creio que isso deixe claro que Ficção Científica não é um “gênero” propriamente dito, não como os outros, ela seria na verdade um dos 4 Super “Gêneros”, ou Campos:


– NÃO-FICÇÃO
– FICÇÃO REALISTA
– FICÇÃO SUPRA REALISTA CIENTÍFICA
– FICÇÃO SUPRA REALISTA FANTÁSTICA (que é a mais distante da realidade)

Numa linhagem progressiva:

Não-Ficção < = > Ficção Realista < = > Ficção Científica < = > Ficção Fantástica

O limiar que separa a FC da FF, bem como a que separa a Ficção da Não-Ficção, pode ser difícil definir, mas a maioria das obras poderão ser enquadradas claramente em um desses Supra Gêneros.

Ficção Científica < = > Ficção Fantástica

Quanto ao Supra Realismo, num extremo teremos aquele modelo de Ficção Fantástica que mais se distancia de qualquer possibilidade real, no outro extremo teremos a radical High Science Fiction (Alta Ficção Científica), ou Hi Sci-Fi, que tenta garantir a perfeita validade de seus argumentos, baseando-se o mais metodicamente possível em projeções plausíves das possibilidades científicas futuras, e em geral assegurando que serão possíveis no futuro.

É por isso que obras de gênero misto, podendo misturar comédia, drama, policial e etc, são difíceis de classificar, indo parar, por exemplo nas locadoras de vídeo, nas mais diversas seções, mas se houver algum elemento de FC, a obra invariavelmente será colocada no grupo FC. Embora muitas vezes haja um completo desentendimento sobre o que significa FC, e já pude constatar, até preconceito.

Até a década de 80 no Distrito Federal, a programação de cinema por exemplo, acessível por telefone, ignorava por completo a FC, categorizando os filmes apenas nos gêneros Aventura, Comédia, Drama, Erótico, Suspense ou Terror, além de outros mais específicos como Karatê e Faroeste.

Toda essa dificuldade resulta em considerar que a FC seja um gênero de natureza equivalente aos outros, quando na verdade sua natureza é bem diferente. Ela é basicamente um grau específico do Supra Realismo da História.

Podemos também, para maior esclarecimento, correlacionar o Grau de RACIONALIDADE com o Grau de SUPRA REALISMO de forma cruzada. Não esquecendo que a Racionalidade está sendo aplicada apenas no âmbito dos argumentos que validam o supra realismo da obra!

Considerando que qualquer obra neste âmbito possui algum grau Positivo de Supra Realismo, verificaremos que as obras de FC estarão acima do limiar das linhas pontilhadas, isto é a FC exige um grau de racionalidade mínima. O nível de Supra Realismo, desde que haja um mínimo, não afeta sua qualidade como FC, determinada tão somente pelo grau de Racionalidade.

Ilustrando o esquema com exemplos populares da FC cinematográfica, no ponto “A” teríamos uma obra com baixo grau de Supra Realismo e alto grau de Racionalidade, “2001-Uma odisséia no Espaço” por exemplo. No ponto “C” teríamos uma obra de maior Supra Realismo e grau pouco menor de Racionalidade, como The Matrix.

No ponto “D” teríamos obras cujo grau de racionalidade embora elevado, ainda não as caracterizaria como FC. Um exemplo são as obras de Tolkien, O Senhor dos Anéis. Apesar da ambientação fantástica, existe uma racionalidade intrínseca no mundo. É possível detectar claros limites para as magias dos personagens após uma maior intimidade com a obra, ao leitor é dado saber o que é possível ou não dentro deste universo fantástico.

Talvez um pouco acima do mesmo ponto “D” eu classificaria uma obra que invariavelmente é considerada FC, os filmes de Star Wars de George Lucas, que apenas a roupagem técnica lhe empresta um teor de FC, porém de baixa racionalidade. As batalhas espaciais, as Espadas de Luz, a gravidade artificial das naves, nada é explicado racionalmente, e são em geral absurdas. Apenas a roupagem lhes disfarça a característica de FF.

No ponto “F” teríamos obras ainda mais supra reais e menos racionais, como Harry Potter, e mais além, e mais abaixo, os famosos contos de fadas, onde virtualmente tudo pode ocorrer sem qualquer justificação racional.

É difícil encontrar filmes no ponto “B”, mas são tema comuns na literatura. Esse talvez seja um dos maiores desafios ao escritor, criar ambientações muito ousadas e validá-las racionalmente. A série “Duna”, de Frank Herbert, talvez seja um bom exemplo popular, mas obras menor famosas como “Fundação” de Isaac Asimov, representam melhor esse duplo exponente de supra realismo e racionalidade.

E no ponto “E” é relativamente simples encontrar exemplos. Quaisquer temas que envolvam uma dose discreta de sobrenatural.

A dificuldade em se perceber melhor esse esquema é que nos acostumamos a classificar obras arbitrariamente apenas pela sua aparência superficial, e é claro, termos associado rígidamente a racionalidade ao “científico”, ainda que essa associação seja útil para categorizar certos casos.

Mas notaremos uma inegável afinidade entre públicos que apreciam certas obras de FC e FF que tem em comum uma coerência e lógica interna satisfatórias, ao mesmo tempo que tem menor apreço por obras que falhem nestes quesitos independente de suas roupagens.

O que tem definido mais claramente a FC é antes de tudo os pressupostos. Quando estes são previstos pelo nosso Paradigma científico atual, a obra tende a ser imediatamente classificada como FC, mesmo que careça de racionalidade em justificar seu Supra Realismo, e mesmo obras muitíssimo ordenadas conceitualmente, lógicamente possíveis, ficarão de fora do “gênero” FC se apresentarem pressupostos místicos ou espirituais.

Isso é evidentemente compreensível, e poderíamos dizer, sensato na maioria das vezes para fins de classificação, mas tem como efeito colateral criar uma nebulosidade nas categorias. E além disso criar um problema relativo ao curiosos processos de OBSOLESCÊNCIA de obras que podem mesmo perder seu status de FC.

Muitas obras já foram superadas pela realidade, como as de Júlio Verne, e algumas de Asimov, muitas vezes se baseando em concepções plausíveis na sua época de produção. É comum classificar-se algumas destas obras como RETROFUTURISTAS, e muitas são propositalmente produzidas com essa características mesmo depois de seus pressupostos já estarem superados. O que interessa porém, é o grau de racionalidade com que o tema é tratado, a coerência interna.

Em Filosofia, ao se falar em “mundos logicamente possíveis”, faz-se “experimentos” imaginários que devem ser consistentes mesmo que seus pressupostos não sejam válidos em nosso mundo real. Uma obra de FC deve, necessariamente, se passar em um Universo Logicamente Possível, onde seus pressupostos não entrem em contradições.

Diferenciar essa essência racional da simples roupagem é quase impossível para os pouco envolvidos com obras de FC, mas é intuitivamente claro para os fãs do gênero.

Do mesmo modo como certas obras são refutadas pela realidade, outras podem ser confirmadas, embora mais comumente superadas. Temas como a viagem à Lua por exemplo, servem como um ótimo exemplo das diferentes formas de FC, sendo representado por obras clássicas de seus precursores, H.G.Wells e Júlio Verne.

Ambos desenvolveram sua viagem à Lua. Verne é em geral menos Supra Realista que Wells, e também menos Racional.” A Viagem à Lua” de Verne por exemplo, exige premissas triviais em seu tempo, a cápsula que vai ao espaço é um projétil disparado por um canhão. Ou seja, isso não exigiu grande esforço de imaginação para a época.

Já Wells usa um conceito muito mais ousado. Em sua obra “O Primeiro Homem na Lua”, existe a “Cavorita”, um material sólido desenvolvido por um excêntrico e genial cientista que possui a propriedade de barrar o efeito da Gravidade. Com isso constroe-se uma cápsula capaz de se isolar da atração da Terra e subir até a Lua.

Portanto, o grau de Supra Realismo é maior. Mas ao mesmo tempo é mais racional, pois uma vez aceita a possibilidade lógica da Cavorita, a temática se desenvolve com perfeição, sem incorrer em contradições. Diferente de Verne que comete um erro primário em sua Viagem à Lua, ao supor que seres humanos poderiam ser colocados dentro de uma cápsula e serem acelerados de 0 a 660 mil Km/h (velocidade de lançamenteo necessária para entrar em órbita) em menos de um segundo, e sobreviverem! Ainda que a Viagem a Lua de Verne tenha um indisfarçável tom satírico.

Portanto, voltando ao gráfico:

Wells estaria mais próximo dos pontos “C” e “B”, ao passo que Verne mais à esquerda de “C” e em geral mais abaixo. E não estou aqui fazendo um julgamento de valor sobre os autores, pois são características de seus estilos literários. Mary Shelley, por exemplo, na ainda mais precursora obra “Frankstein”, estaria por volta do limiar, próximo ao ponto “D”, pois que seu livro basicamente usa uma premissa razoavelmente “Alquímica” para desenvolver uma tragédia.

Mas a confusão entre FF e FC não pode ser solucionada em definitivo, pois na verdade a Ficção Supra Realista pode se confundir mesmo com a Não-Ficção, ou seja com o que consideramos Realidade. Temos vários relatos de eventos fantásticos cujas fontes garantem ser reais. Há filmes com estórias Ufológicas por exemplo que se dizem baseados em fatos reais, ou eventos milagrosos e místicos em geral.

Afinal, o que poderia haver de mais fantástico do que a saga de Moisés e as 10 pragas do Egito, travessia do Mar Vermelho e etc? Boa parte da humanidade considera tais eventos verídicos. No entanto um filme como Impacto Profundo já pode ser Considerado Ficção Realista, assim como muitas obras de FC do passado já foram superadas pela realidade, o que porém não aconteceria com a FF. Mas nem mesmo nosso avanço e progresso científico não conseguem eliminar a crença de muitos em eventos Fantásticos.

Como podemos ver, a dificuldade em se definir o quem vem a ser ou não Ficção e se esta é Fantástica ou Científica, não é um simples problema da literatura em si. É um problema da própria realidade. Nós não temos como ter certeza da “realidade” de tudo a nossa volta, não podemos de fato garantir se muitas coisas são de fato possíveis ou não, e essa dificuldade se extende e se intensifica na produção de Supra Realismo.

Os próprios fatos históricos e cotidianos estão sujeitos a elevados graus de interpretação e distorção, e uma pessoa crédula pode ter muito mais convicção da existência de fenômenos extra ordinários do que de certos fatos trivias.

Fatos ou Interpretações? Realidade, ou Ficção? Ilusão?

São questões universais, que a Filosofia ainda tem muito o que investigar.

Fonte:
http://www.xr.pro.br/FC/FCPREHISTOR.html

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